Henrique Campos recebeu uma liminar, concedida à Barcas S.A., que o responsabiliza por desordens na manifestação marcada para o dia do aumento das passagens
Professor de história e mestrando em Teoria da Literatura, Henrique Campos postou na internet um vídeo em que critica o aumento da tarifa das barcas. Além disso, declarou que condena o serviço em uma rede social. Ele ficou surpreso quando recebeu uma liminar, concedida à Barcas S.A., que o responsabilizava por possíveis desordens na manifestação marcada para o dia do aumento das passagens. Henrique foi intimado a depor e está envolvido em um processo que o acusa de apologia ao crime.
A liminar que obriga o Psol a pagar R$ 5 milhões, em caso de dano ao patrimônio das Barcas S.A. envolve também o seu nome. O que levou a empresa a tomar essa atitude?
O episódio é uma grande afronta à liberdade de expressão dos trabalhadores. Todos sabem o quanto o serviço das barcas é precário e, inclusive, perigoso. De maneira alguma me considero uma ameaça. Pelo contrário, me considero um cidadão que luta pelos nossos direitos sociais, em tempos nos quais, a cada dia, somos criminalizados por lutar pela dignidade. A estratégia da empresa foi simples: arranjar um bode expiatório para frear um movimento legítimo. Tendo em vista o grande número de acessos ao vídeo que produzi em repúdio ao autoritarismo das Barcas S.A. e meus protestos por meio de redes sociais, fui acusado de ser uma ameaça à ordem pública. Em nenhum momento eu incentivei atos de violência, nem no Facebook nem em lugar nenhum. O que a empresa considera crime são apenas a organização, os debates e o compartilhamento de materiais que tratam da questão das Barcas S.A. Estão criminalizando a organização dos passageiros insatisfeitos com o serviço das barcas. Isso, sim, é uma ameaça à democracia brasileira.
Qual foi sua reação ao tomar conhecimento do processo?
Fiquei espantado e com sentimento de profunda injustiça. Ao mesmo tempo, percebi que o processo refletia o receio que a empresa Barcas S.A. tem da mobilização das pessoas. No início de fevereiro, rolou a coleta de assinaturas para o abaixo-assinado e panfletagem. Cotidianamente, os funcionários das barcas filmavam as pessoas responsáveis pela coleta, como se os passageiros que se mobilizavam estivessem fazendo algo de errado. Existem interesses envolvidos nessa questão que não se referem somente à Barcas S.A. Antes de tudo, isso é política. Por isso, a minha reação no momento que recebi a liminar foi de profunda revolta com a empresa e com o governo. Sabemos que as empresas privadas de transportes enxergam nos governos importantes aliados, com apoios financeiros constantes: as empresas recebem verdadeiras bolsas-empresários (com auxílios fiscais) e os governantes recebem verba de campanha, durante as eleições, de boa parte dessas empresas.
Além da diminuição do valor das passagens, o que o movimento reivindica?
Quero reforçar a ideia de que este movimento não é algo homogêneo e coeso. Somos apenas passageiros protestando. Porém, pode-se perceber que o descontentamento não é só com o preço da tarifa, mas com o contrato de concessão das Barcas S.A., que deixou de ser cumprido em muitos pontos. As barcas da madrugada foram extintas; o terminal de São Gonçalo, que era para ter ficado pronto em 2000, não foi construído; o aumento proporcional da frota, em relação ao número de passageiros, não aconteceu, fora a prestação de contas obscuras. Há uma série de irregularidades. O descontentamento vai da barata que caminha sobre os nossos pés na embarcação até a indignação de não ter uma barca para voltar para casa de madrugada. É o nosso direito de ir e vir que está em jogo. Devemos transformar o modelo de gestão dos transportes profundamente. Transporte não pode ser um negócio, tem que ser um direito público de fato. Há um perfil no Facebook, intitulado “revolta das barcas”, que já possui mais de 2,5 mil amigos. A partir de lá, agrupamos importantes informações.
Um forte aparato policial foi mobilizado para, de acordo com a Barcas S.A., evitar tumultos nas manifestações. Por outro lado, os participantes afirmavam que o protesto tinha fins pacíficos. Você acha que a força policial é capaz de inibir manifestantes?
Somos um país de forte tradição autoritária. A nossa polícia ainda é militar. Do fim da ditadura para cá, as coisas parecem ter mudado à primeira vista; mas, na realidade, os movimentos sociais ainda são criminalizados. A presença ostensiva da polícia e do batalhão de choque, armados com bombas de gás lacrimogêneo, procura, sim, intimidar os manifestantes. Em um país como o nosso, em que há duas leis, a do rico e a do pobre, a intimidação é clara. A entrada arbitrária de policiais militares no campus da UFF é uma prova disso. Esse ato é de uma gravidade imensa, que precisa ser denunciada, pois relembra as ações da ditadura militar. Deve servir como alerta e questionamento: vivemos de fato numa democracia?
Por parte das autoridades, diante de uma manifestação popular que demonstre insatisfação, qual postura você julgaria correta?
Algo que nunca foi feito decentemente na nossa história: tratar uma manifestação do ponto de vista social, não policial. Vivemos em um país no qual protesto é coisa de polícia. É muito bonito quando falam dos povos árabes protestando, do movimento occupy no mundo todo. Quando o foco chega no Brasil, os manifestantes são considerados baderneiros e vândalos. Como representante da população, o governo deve legitimar essas manifestações e tratá-las como demandas legítimas do povo, ao invés de convocar um forte aparato policial.
Antes da era Lula, os caras-pintadas foram às ruas para denunciar o governo Collor. Na gestão tucana, aconteceu o movimento “Fora FHC”. Nos últimos anos, escândalos políticos causaram indignação, mas não se transformaram em grandes passeatas. O que aconteceu?
Poderíamos dizer que a participação popular no nosso país foi progressivamente atacada. As pessoas pensam que a ditadura acabou faz muito tempo e que não é válido lembrarmos dela. Porém, devemos observar que a apatia política que nós vivemos se deve muito ao desmantelamento das organizações populares antes de 1964. O governo do PT iludiu muitas pessoas, mas, na realidade, é a outra face do modo tucano de governar. As pessoas estão se dando conta disso aos poucos. Além disso, acham que a política não diz respeito a elas. Mas, um dia, elas mudam. Os protestos da barca evidenciam isso.
Assim como a Primavera Árabe, importante onda de protestos no Oriente Médio e na África, o movimento contra o aumento da passagem das barcas criou força por meio das mídias sociais. Qual a importância dessas ferramentas para possíveis mobilizações?
É de grande importância, já que nem sempre a população tem voz nos grandes veículos de informação. Na internet, temos ainda mais liberdade de expor ideias. Ainda assim, a repressão está crescendo até nesse espaço. Para mim, vale muito mais olhar a atualização de notícias postadas por amigos de blogs independentes do que assistir a um telejornal que, muitas vezes, é tendencioso e omite informações importantes.
E quais sãos os riscos das mobilizações via internet?
O risco principal é achar que a mobilização se resume somente ao mundo virtual. Pensar que só porque protestamos na internet não precisamos mais estar nas ruas. Em segundo lugar, vem o progressivo policiamento das redes sociais. No caso da liminar emitida pelas Barcas S.A., a empresa me acusa de criminoso apenas porque me posicionei na internet.
Por definição, democracia é o regime de governo no qual o povo detém o poder de tomar importantes decisões, por meio de representantes políticos eleitos. Você acha que os cidadãos desfrutam dos direitos democráticos?
Basta olharmos ao nosso redor: o massacre de Pinheirinho; as remoções ilegais de comunidades nas capitais brasileiras para os eventos de 2014 e de 2016, que já foram denunciadas pela ONU; a perseguição aos bombeiros e policiais grevistas; os estudantes das universidades federais que são perseguidos, entre muitos outros. Os direitos democráticos valem para quem tem dinheiro, poder e influência. Vivemos num país de duas leis: uma para o pobre, outra para o rico. Essa é a maior obscenidade da história do Brasil. Os direitos constitucionais não valem quando cruzamos as roletas das Barcas S.A., ou quando levantamos cartazes. Ao povo, são vedadas a organização, conscientização e luta política.
Fonte: http://jornal.ofluminense.com.br/editorias/revista/ordem-ameacada
A liminar que obriga o Psol a pagar R$ 5 milhões, em caso de dano ao patrimônio das Barcas S.A. envolve também o seu nome. O que levou a empresa a tomar essa atitude?
O episódio é uma grande afronta à liberdade de expressão dos trabalhadores. Todos sabem o quanto o serviço das barcas é precário e, inclusive, perigoso. De maneira alguma me considero uma ameaça. Pelo contrário, me considero um cidadão que luta pelos nossos direitos sociais, em tempos nos quais, a cada dia, somos criminalizados por lutar pela dignidade. A estratégia da empresa foi simples: arranjar um bode expiatório para frear um movimento legítimo. Tendo em vista o grande número de acessos ao vídeo que produzi em repúdio ao autoritarismo das Barcas S.A. e meus protestos por meio de redes sociais, fui acusado de ser uma ameaça à ordem pública. Em nenhum momento eu incentivei atos de violência, nem no Facebook nem em lugar nenhum. O que a empresa considera crime são apenas a organização, os debates e o compartilhamento de materiais que tratam da questão das Barcas S.A. Estão criminalizando a organização dos passageiros insatisfeitos com o serviço das barcas. Isso, sim, é uma ameaça à democracia brasileira.
Qual foi sua reação ao tomar conhecimento do processo?
Fiquei espantado e com sentimento de profunda injustiça. Ao mesmo tempo, percebi que o processo refletia o receio que a empresa Barcas S.A. tem da mobilização das pessoas. No início de fevereiro, rolou a coleta de assinaturas para o abaixo-assinado e panfletagem. Cotidianamente, os funcionários das barcas filmavam as pessoas responsáveis pela coleta, como se os passageiros que se mobilizavam estivessem fazendo algo de errado. Existem interesses envolvidos nessa questão que não se referem somente à Barcas S.A. Antes de tudo, isso é política. Por isso, a minha reação no momento que recebi a liminar foi de profunda revolta com a empresa e com o governo. Sabemos que as empresas privadas de transportes enxergam nos governos importantes aliados, com apoios financeiros constantes: as empresas recebem verdadeiras bolsas-empresários (com auxílios fiscais) e os governantes recebem verba de campanha, durante as eleições, de boa parte dessas empresas.
Além da diminuição do valor das passagens, o que o movimento reivindica?
Quero reforçar a ideia de que este movimento não é algo homogêneo e coeso. Somos apenas passageiros protestando. Porém, pode-se perceber que o descontentamento não é só com o preço da tarifa, mas com o contrato de concessão das Barcas S.A., que deixou de ser cumprido em muitos pontos. As barcas da madrugada foram extintas; o terminal de São Gonçalo, que era para ter ficado pronto em 2000, não foi construído; o aumento proporcional da frota, em relação ao número de passageiros, não aconteceu, fora a prestação de contas obscuras. Há uma série de irregularidades. O descontentamento vai da barata que caminha sobre os nossos pés na embarcação até a indignação de não ter uma barca para voltar para casa de madrugada. É o nosso direito de ir e vir que está em jogo. Devemos transformar o modelo de gestão dos transportes profundamente. Transporte não pode ser um negócio, tem que ser um direito público de fato. Há um perfil no Facebook, intitulado “revolta das barcas”, que já possui mais de 2,5 mil amigos. A partir de lá, agrupamos importantes informações.
Um forte aparato policial foi mobilizado para, de acordo com a Barcas S.A., evitar tumultos nas manifestações. Por outro lado, os participantes afirmavam que o protesto tinha fins pacíficos. Você acha que a força policial é capaz de inibir manifestantes?
Somos um país de forte tradição autoritária. A nossa polícia ainda é militar. Do fim da ditadura para cá, as coisas parecem ter mudado à primeira vista; mas, na realidade, os movimentos sociais ainda são criminalizados. A presença ostensiva da polícia e do batalhão de choque, armados com bombas de gás lacrimogêneo, procura, sim, intimidar os manifestantes. Em um país como o nosso, em que há duas leis, a do rico e a do pobre, a intimidação é clara. A entrada arbitrária de policiais militares no campus da UFF é uma prova disso. Esse ato é de uma gravidade imensa, que precisa ser denunciada, pois relembra as ações da ditadura militar. Deve servir como alerta e questionamento: vivemos de fato numa democracia?
Por parte das autoridades, diante de uma manifestação popular que demonstre insatisfação, qual postura você julgaria correta?
Algo que nunca foi feito decentemente na nossa história: tratar uma manifestação do ponto de vista social, não policial. Vivemos em um país no qual protesto é coisa de polícia. É muito bonito quando falam dos povos árabes protestando, do movimento occupy no mundo todo. Quando o foco chega no Brasil, os manifestantes são considerados baderneiros e vândalos. Como representante da população, o governo deve legitimar essas manifestações e tratá-las como demandas legítimas do povo, ao invés de convocar um forte aparato policial.
Antes da era Lula, os caras-pintadas foram às ruas para denunciar o governo Collor. Na gestão tucana, aconteceu o movimento “Fora FHC”. Nos últimos anos, escândalos políticos causaram indignação, mas não se transformaram em grandes passeatas. O que aconteceu?
Poderíamos dizer que a participação popular no nosso país foi progressivamente atacada. As pessoas pensam que a ditadura acabou faz muito tempo e que não é válido lembrarmos dela. Porém, devemos observar que a apatia política que nós vivemos se deve muito ao desmantelamento das organizações populares antes de 1964. O governo do PT iludiu muitas pessoas, mas, na realidade, é a outra face do modo tucano de governar. As pessoas estão se dando conta disso aos poucos. Além disso, acham que a política não diz respeito a elas. Mas, um dia, elas mudam. Os protestos da barca evidenciam isso.
Assim como a Primavera Árabe, importante onda de protestos no Oriente Médio e na África, o movimento contra o aumento da passagem das barcas criou força por meio das mídias sociais. Qual a importância dessas ferramentas para possíveis mobilizações?
É de grande importância, já que nem sempre a população tem voz nos grandes veículos de informação. Na internet, temos ainda mais liberdade de expor ideias. Ainda assim, a repressão está crescendo até nesse espaço. Para mim, vale muito mais olhar a atualização de notícias postadas por amigos de blogs independentes do que assistir a um telejornal que, muitas vezes, é tendencioso e omite informações importantes.
E quais sãos os riscos das mobilizações via internet?
O risco principal é achar que a mobilização se resume somente ao mundo virtual. Pensar que só porque protestamos na internet não precisamos mais estar nas ruas. Em segundo lugar, vem o progressivo policiamento das redes sociais. No caso da liminar emitida pelas Barcas S.A., a empresa me acusa de criminoso apenas porque me posicionei na internet.
Por definição, democracia é o regime de governo no qual o povo detém o poder de tomar importantes decisões, por meio de representantes políticos eleitos. Você acha que os cidadãos desfrutam dos direitos democráticos?
Basta olharmos ao nosso redor: o massacre de Pinheirinho; as remoções ilegais de comunidades nas capitais brasileiras para os eventos de 2014 e de 2016, que já foram denunciadas pela ONU; a perseguição aos bombeiros e policiais grevistas; os estudantes das universidades federais que são perseguidos, entre muitos outros. Os direitos democráticos valem para quem tem dinheiro, poder e influência. Vivemos num país de duas leis: uma para o pobre, outra para o rico. Essa é a maior obscenidade da história do Brasil. Os direitos constitucionais não valem quando cruzamos as roletas das Barcas S.A., ou quando levantamos cartazes. Ao povo, são vedadas a organização, conscientização e luta política.
Fonte: http://jornal.ofluminense.com.br/editorias/revista/ordem-ameacada